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Uma vida normal

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 2 de dezembro de 2014 · 3 mins read
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Geralmente, quando se retratam assuntos LGBT, fala-se nos direitos, nas diferenças, na existência e, fundamentalmente, no papel que se tem na sociedade fora da esfera intíma. Sendo um assunto sensível, é retratado de formas muito diferentes por pessoas muito diferentes. Não é disto que venho escrever, mas sim, sobre uma coisa essencial, o direito à indiferença (um termo a usar com algum cuidado).

Como referi num artigo anterior (Como nem tudo é bom) é natural que comece os meus primeiros contactos com a sociedade de uma forma mais intensa. Agora, mais do que nunca, estou numa prova de fogo social. Preciso de me integrar e integrar é, de alguma forma, viver na normalidade. É aqui, neste ponto, que retrato a palavra indiferença. O meu dia a dia é preenchido com todas as actividades rotineiras, as mesmas que anteriormente. Desde acordar de manhã, ir ao café, ir cortar o cabelo, ir trabalhar, ir ao supermercado ou ir a qualquer outro lado. Assim, é nestas situações que é necessário sentir que não existe diferença na postura, mesmo que por vezes a situação possa ser mais difícil de gerir.

Exemplos práticos. Tipicamente comprava a minha roupa feminina como qualquer outra peça masculina. Como nunca me ofereci a grandes escolhas, nunca pensei realmente na expressão “provador de roupa”. Comprava, levava para casa e, na pior das hipóteses, voltava com a roupa para trocar. Ninguém entrava na minha esfera pessoal. Porém, as coisas mudam e, tal como há pouco tempo comecei a experimentar alguma roupa masculina, agora que me estou a dar a oportunidade de livremente escolher roupa, gosto de a experimentar (agora faz-me mais sentido, pois gosto do que procuro). Nos últimos tempos tenho comprado algumas coisas, mas neste último fim de semana decidi que seria interessante aventurar-me no mundo do “provador de roupa”, independentemente da minha expressão actual. Ora, o facto de estar aparentemente masculina não me trouxe grandes vantagens no tratamento, mas ainda assim, fui bastante bem acolhida na generalidade dos sítios. Experimentei roupa em várias lojas, H&M, Mango, New Yorker, Stradivarius (Dolce Vita Tejo) e as reacções foram geralmente neutras. A Mango e a Stradivarius são lojas femininas e as funcionárias olharam-me com surpresa, eu respondi com um sorriso, uma frase divertida e segui normalmente. Na New Yorker não havia funcionárias no provador daí não haver qualquer problema. Na H&M não cheguei a perceber se havia diferenciação, mas como levava vestidos para experimentar foi claro que havia qualquer coisa incoerente, nada que um sorriso não resolva. Por último, na Primark, havia claramente uma diferença entre provadores masculinos e femininos. Num primeiro contacto fiquei receosa de ter algum problema, mas falei (ia acompanhada com uma amiga) tranquilamente com a funcionária e o assunto encaminhou para uma resposta rápida e atenciosa. Os funcionários perceberam que seria “confuso” para as clientes no provador feminino e seria “expor-me injustamente” no provador masculino e, com isso, foram rápidos a ter uma solução: o provador para os deficientes - assim poderia estar acompanhada sem qualquer problema. No fim, a questão acabou por ser divertida para todos, ninguém foi desagradável. Apenas a surpresa das perguntas.

É com base na experiência do dia a dia que percebemos o quanto estamos ou não preparados para ir enfrentando diversas questões. Tenho percebido que a naturalidade e um pouco de humor são, muitas vezes, o suficiente para que de uma situação de surpresa se caminhe para uma resposta simpática e atenciosa. Ao contrário do que se passou no Fitness Hut (apesar de ser uma questão prática diferente), ninguém criticou ou questionou a minha posição. Procurou-se dar uma resposta simples e clara, sem acusação ou diferenciação. O problema ficou pela questão prática e não pela “minha pessoa ou identidade”.

O direito à indiferença neste contexto é crucial, é permitir que qualquer pessoa possa ter a sua vida estável e normalizada. É permitir que qualquer um possa usufruir do mesmo sem ser descriminado pela diferença, pois essa diferença é pessoal. O direito à indiferença é não haver distinção entre A, B ou C, quando o direito respeita apenas à condição “ser letra”.

É, em muitos casos, apenas neste tópico que a mudança é necessária.

Dani Bento

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma