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Uma tela branca

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 16 de abril de 2019 · 4 mins read
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Acompanha o meu caminho uma tela branca. Uma tela quadrada, simples, de moldura feita de madeira de pinho. O tecido é novo e o seu peso é acessível. Facilmente transportável. Facilmente se coloca no bolso e facilmente se esconde na carteira. Também a tela consegue cobrir uma parede por inteiro, ou até mesmo o chão de um armazém. É apenas uma tela insignificante, mas que acompanha-me por onde vou. Porém, esta tela nunca deixou de ser branca. Depois de milhares de milhões de quadros pintados, coloridos, rasgados, esfaqueados, queimados, destroçados… a tela continua a ser branca.

É apenas uma tela quadrada, simples, de moldura feita de madeira de pinho.

Hoje de manhã acordei com esta mesma tela a meu lado, ali estava ela, pequena… debaixo da almofada, com a ponta de fora. Quase não se via, surpreendentemente, eu quase não a via, mas estava lá… a tela… pequena… debaixo da almofada, com a ponta de fora. Decido ignorá-la, tantas vezes a contemplo que, por vezes, desejo esquecê-la. Mas esta não se deixa ignorar, não se deixa esquecer. Depressa a minha porta era a tela e a tela era a minha porta. Não tinha por onde escapar, a não ser deixar-me ficar debaixo dos lençóis. Levanto-me e com dois gestos de loucura, atiro-me contra a porta… não iria ficar ali. Pego nas canetas e volto a pintar, risco, risco, risco… nesta manhã é o que sei fazer… riscar, riscar, riscar. Continuo a riscar até não haver mais branco. Até não haver mais margem, até não se ver a madeira de pinho. Risco, risco, risco… o que começou com um pincelar suave, acaba numa luta desesperada de apagar o quadro da minha frente. E como se já mais nada pudesse acontecer, sou enviada para o lado de lá da porta… caída no chão, sinto um barulho, sinto o chão tremer… e procuro olhar-me novamente. Zangada, furiosa, procuro levantar-me, levanto-me, caminho, tranco a porta atrás de mim, não quero voltar a estar naquele quarto.

Por momentos sou absorvida por uma dor que me chega. Não sei de onde vem, para onde vai. Não sei que parte do meu corpo dói, apenas sei que a dor navega por cada gota de sangue que é bombeada pelo meu coração. É nesse instante, que inocentemente sou absorvida pela ideia de que nunca mais a tela me vai acompanhar, que ficou fechada naquele quarto, a fingir de porta. Riscada para todo o sempre, transformada num monte de tinta. Corro desalmadamente para fora de casa, felicitando o meu progresso. Não sou pintora, nem nunca almejei ser… mas ser acompanhada por esta tela que nunca deixou de ser branca torna-se a cada dia mais difícil, mais pesado, mais impossível.

Sorrio, fecho os olhos por uns segundos e respiro o ar da natureza, do jardim que circunda a minha casa. Vêm-me os cheiros das árvores molhadas, da terra molhada, os barulhos dos pássaros que saiem dos ninhos e dos bichos que se esfregam pela erva acabada de sentir chuva. Deixo-me ficar, deixo-me ficar de olhos fechados. Não sei quanto tempo passou, mas aos poucos, o cheiro das árvores e da terra desaparece e o barulho dos pássaros e dos bichos silência-se. A dor volta-me a atacar, o sangue das minhas veias aquece e circula a um ritmo que me faz latejar em todas as partes do meu corpo. Como se o corpo se estivesse a desintegrar, mas mantendo a sua forma original. Como se cada átomo soube-se precisamente onde deve e quando deve estar. Os meus olhos ardem e sou forçada a abri-los.

Onde estou? Pergunto-me. Tudo está deslocado, tudo está no limite da minha visão, nada está perto. Tento mover-me, mas preciso de um Universo de energia para o fazer. Sinto um peso que vem da cabeça para os pés… Deixei de ser eu e a tela, eu sou a tela e a tela sou eu. Engolida pelo meu próprio sentir, caí no infinito das projecções. Caí no infinito das cores. Caí no infinito do absurdo. Caí. O meu coração bate rápido, tão rápido que acredito que se vai desfazer.

É neste momento que percebo onde estou. É neste momento que percebo onde me sinto. É neste momento que me encontro a caminhar. Eu e a tela, a tela e eu. Uma tela quadrada, simples, de moldura feita de madeira de pinho. Insignificante. Porém uma tela que nunca deixou de ser branca.

Dani

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma