Ligo o computador, sento-me na cadeira e olho em frente. Olho para a parede, ainda que tenha quadros e fotografias só consigo sentir a sua cor branca. Só vejo esse reflexo, talvez porque seja isso que sinto neste momento, uma parede branca onde não consigo desenhar nenhuma emoção ou sentido de estar. Quero aproveitar esta energia, meio melancólica, meio que tranquila, meio que sorridente para escrever. Escrever sobre uma parede branca sem nada, apenas o frio branco de inverno que consome um mar gélido de inverno.
Pergunto-me consecutivamente, o que estou eu a sentir agora? Não sei. A verdade é que não sei. O reflexo branco é uma combinação de todas as cores, e talvez seja por isso que só consigo sentir branco. Sou atingida pelas emoções mais fortes de alegria, mas também as mais fortes de tristeza. Estou eu alegre ou triste? Não sei. Ambas as emoções estão presentes de uma forma difusa. Muito difusa, porque se misturam com todas as outras emoções básicas do ser. É assim, sentir-me uma parede branca.
Porém, há uma coisa que sei: não estou em crise. E posso sentir sem estar em crise. E talvez isso seja o mais importante de sentir-me uma parede branca. É deixar-me e permitir-me sentir todo o espectro de emoções que existem e não questionar a minha saúde por estar feliz ou estar triste. Durante anos, esse foi um critério para gerir as emoções, não me permitia simplesmente vivê-las, porque significavam algo mais aterrador, mais provocador, mais mortífero… na realidade.
Hoje é diferente.
Hoje permito-me sentir em determinadas dimensões, permito-me viver. Permito-me ter emoções fortes simultâneas, permito-me não saber o que sinto. Permito-me, sem destruir a minha vida e tudo o que me rodeia.
Comecei este artigo sem saber o que iria escrever, apenas por vontade de colocar umas palavras num texto, sem significado ou significante, apenas umas palavras. Só isso. Agora sigo por um caminho diferente e toco na minha saúde, não consigo não tocar na minha saúde quando falo de emoções.
Ter um problema de saúde que se relaciona com as emoções e com o humor é um exercício diário e contínuo e muitas vezes invisibilizado. Sentir-me uma parede branca é permitir que até os sintomas das doenças sejam eles projetados, sejam eles questionados e colocados sob escrutínio. Porém, refletem-se em paredes brancas, sem cor ou forma, sem desenho ou pintura… são invisíveis. Essa invisibilidade dá-me apertos no coração e dificulta-me a partilha, dificulta-me expressar. Acabam por ser estes textos, a forma que tenho de o fazer.
Respiro fundo, preciso respirar fundo neste momento. As palavras começam a bloquear o meu pensamento e começo a ter dificuldade em escrever, mas continuo, vou continuar. Fecho os olhos e escrevo dessa maneira, sem medo, sem medo do que vai sair no teclado, confio nos meus dedos, confio na minha memória corporal. O mesmo confiar na mecânica dos meus dedos, também me traz memórias corporais difíceis. Memórias corporais que me acompanham uma vida e que preciso desfazer, por isso tão importante para mim o acesso ao meu corpo e ao que faço com ele (a minha autonomia e espontaneidade).
Durante anos, o fato de ter bipolaridade e borderline escondeu a minha relação com o meu género. Escondeu quem eu era, mascarando-me de uma masculinidade que não era minha, um lugar que não era o meu. O medo de não sentir amor e não me sentir amada estava muito presente.
Hoje é diferente.
Hoje percorro outro caminho. A minha relação com o meu género é agora livre, fluída e verdadeira. Encaixar-me na não-binariedade sem sair da mulheridade foi para mim um salto enorme na interpretação da minha vida e do que sentia.
Por outro lado, a minha relação com a sexualidade também era difícil e também de um bloqueio enorme. A minha afirmação enquanto pessoa trans, desbloqueou a minha própria sexualidade e a forma como a sentia no meu dia a dia. Deixou-me mais livre, deixou-me mais capaz e, acima de tudo, permitiu-me começar a reescrever partes da minha história de vida que estavam num profundo silêncio.
A parede branca para mim é simbólica. E irá continuar a ser.
Gostava de um dia, ter a liberdade de dar cores a esta parede, simboliza-la das emoções fortes de que se compõem, sem destruir nada… sem destruir a minha vida durante meses, sem destruir relações e responsabilidades. Sem deixar de ser eu. A radicalidade das emoções que compõem o meu dia a dia são, muitas vezes, avassaladoras. Gasto, sem sombra de dúvida, muita energia para as conter, para que a parede não se desmorone com a sua força.
Em artigos anteriores, como aqui e aqui, referi como muitas das minhas crises foram de uma violência brutal contra mim mesma. Como eu passava de um pólo ao outro de uma forma rápida, quase instantânea, sem eu própria perceber porquê. Hoje entendo. Porém, entender não cura, alivia, mas não cura. É por isso que a troca de experiências é tão importante para mim… como é que as pessoas que vivem com bipolaridade e borderline sentem? Como são as suas emoções, como se expandem ou recolhem?
São muitas dúvidas as que tenho por falta de referenciais. Só conheço o meu próprio caso e pouco mais.
É por isto que para mim escrever também é importante, partilhar, politizar as minhas emoções e dificuldades. Politizar quem eu sou na minha íntegra.
Não me estou a sentir em fase de crise, mas sinto-me reflexiva em relação às minhas emoções, sinto que estou a tentar localizar-me algures no mundo. Num mundo onde as minhas emoções têm lugar expressivo, mesmo quando fortes. Num mundo onde falar de mim e do que verdadeiramente sinto, não seja relativizado à luz da normatividade e do espectro emoção-racionalização-fisicalidade normativo.
Hoje é diferente. Sei quem sou.
Dani
Imagem: Finish Line - Hans-Jörg Aleff