Descobri-me enquanto mulher trans e não binária já após os meus 20 anos. Nada que não se tivesse manifestado mais cedo, mas simplesmente não tinha linguagem nem forma de descrever aquilo que sentia, aliás, por outro lado, sentia-me erroneamente com um problema e, um problema grave. Só nos meus 27 anos, depois de um processo intenso de desconstrução de quem eu era e daquilo que desejava para mim decidi que queria mudar o meu nome e género no cartão de cidadão. Nessa altura ainda não havia uma lei de autodeterminação e ainda tinha de ter um diagnóstico de “Perturbação de Identidade de Género” para o fazer. O meu conhecimento era parco e não eu própria não tinha muita informação de como todos estes processos funcionavam, mas de uma coisa eu sabia: quem eu era e onde me situava.
Entender-nos enquanto pessoas num mundo onde não sabemos onde nos encaixar é, muitas vezes, um processo doloroso e foi aí que me encontrei durante muito tempo. A não saber onde pertencer, porque de facto, não pertencia a lugar nenhum. Hoje continuo a lutar para pertencer a algum lugar, mas não é este o lugar que quero, é outro lugar, um ainda por construir. Porém vivo aqui, trabalho e estudo aqui, as minhas relações estão aqui e por isso tenho de continuar a lutar por este processo de me fazer incluir, em modo de sobrevivência, nos espaços que já existem. No entanto, cada processo é um processo e para muitas pessoas com identidades como a minha, dissidentes, não normativas, transgressoras, pertencer ao mundo é um trabalho constante, permanente e contínuo.
Poderia escrever imenso sobre como foi para mim todo o meu processo de descoberta, desde os milhentos textos que escrevi, desde as vezes que me perdi completamente e não queria ver ninguém, desde a minha tentativa forçada de pertencer ao mundo dos homens, a passar pelo meu estado catatónico nos momentos em que simplesmente queria desistir. Poderia escrever sobre isto e muito mais, mas a minha vida é bem mais rica do que apenas isto. A minha vida é uma descoberta identitária de uma capacidade incrível de me fazer acordar todos os dias com um sorriso na cara. Foi a transformação da noite para o dia, da lógica da sobrevivência para a lógica da vivência. Foi a mudança.
Tudo isto para dizer que estes processos são de uma complexidade enorme, não podem ser retratados como simplesmente algo banal e corriqueiro. Não pode ser tratado simplesmente pela roupa ou pelos brinquedos que usamos em criança. Não pode ser tratado apenas pela concepção daquilo que as pessoas projetam em nós enquanto seres sociais. Por outro lado, é um processo interno de imenso remeximento, por vezes e infelizmente muitas vezes, sofrimento atroz, outras vezes uma descoberta para a vida. É talvez, neste momento que muitas pessoas não irão compreender, porem não precisam, apenas precisam de respeitar que o mundo não é apenas uma linha recta que é traçada do início para o fim… dá muitas voltas, tem muitos cortes, nós e becos sem saída. Reduzir a experiência de ser trans a uma mera concepção performativa social é de uma redução enorme à vivência que se tem.
Posto isto, não é de admirar que pessoas tenha uma dúvida enorme em como tratar com estas questões. Porém existe a dúvida, a pura ignorância, existe o mau trato e existe o ódio. As duas primeiras tratam-se com informação, educação, muita paciência. As duas últimas tratam-se com medidas mais assertivas e de uma dimensão diferente. Foi no panorama das últimas duas que nos últimos dias fomos inundados com artigos na comunicação social em reacção a um despacho emitido pelo Governo que procura garantir melhorar as condições de vida a jovens trans e intersexo na sua vida escolar. Várias pessoas (pertencentes a partidos políticos e outras) contestaram esta medida do governo, dizendo ser inconstitucional, uma aposta na propagação da chamada “Ideologia de Género” nas escolas e a destruição da família e das crianças. E tudo isto resultado do facto de se tentar ajudar estes jovens a ter uma vida mais coerente no ambiente escolar, podendo usar a casa de banho e os balneários assignada ao género que se identificam. Poderia entrar em detalhes sobre quem e como foram proferidas estas opiniões, mas o facto de existirem já é demasiado problemático, não quero dar palco a tamanhas vozes.
O facto é simples: estamos a falar de uma necessidade básica, ir à casa de banho. É este o temor destas vozes. A destruição da família, do lar, das crianças vai-se dar pelo facto de simplesmente quererem usufruir de um espaço seguro para fazerem aquilo que todas as pessoas fazem: ir à casa de banho. Conto já muitos anos que vou à casa de banho do género do qual me identifico, mesmo antes de ter um documento legal que o comprovasse. Tornou-se um espaço de alguma segurança que não existia antes. Pessoas trans não trazem problemas nas casas de banho, pessoas mal intencionadas sim. Neste momento não existe qualquer controlo nas casas de banho, qualquer pessoa pode entrar em qualquer casa de banho. Será mesmo preciso alguém afirmar-se como trans (contornando toda a experiência que é ser trans) para ir a uma casa de banho? Será agora que a sinalética presente nas casas de banho vá resultar de acordo com o que foram destinadas? Se o argumento for tão simples quando o medo da invasão dos espaços intímos de outras pessoas na casa de banho, então temos um problema grave de interpretação do mundo e da realidade a que estas pessoas estão sujeitas no seu dia a dia. Talvez o problema não esteja nas crianças que querem ir à casa de banho, o problema está nos adultos que já criaram todas as imagens pornográficas de rapazes e raparigas nos mesmos espaços - isso sim, é problemático. Estamos a falar de uma minoria de pessoas que é extremamente estigmatizada, que sofre uma violência atroz no seu dia a dia, cujas taxas de problemas de saúde mental e tentativas de suicídio são devastadoras. É por estas crianças que estamos a zelar um melhor espaço: um espaço um pouco mais seguro. Um pouco mais porque a sociedade continua a mover-se e continuará a estigmatizar, não se muda mentes por lei, porém, tentamos contribuir para o seu melhor bem estar.
E é por causa de pessoas como estas, que eu e muitas vamos continuar a sentir dificuldade em pertencer em algum lugar nesta sociedade, a não sentir segurança quando se em qualquer espaço público ou privado. Quando se está na rua ou simplesmente a cumprir uma necessidade fisiológica elementar. Sabem quantas vezes eu tenho de olhar para o chão por temer represálias em qualquer casa de banho que vá? Neste momento, seja ela masculina ou feminina. Pois bem, é a este mau estar constante que estamos sujeitas. Um mau estar que só quem tem privilégio social consegue ignorar.
O problema não são as casas de banho, o problema é afirmar-se que com tudo isto, estamos a tentar implementar uma “Ideologia de Género”, uma teoria (como ouvi ontem), como se a estrutura nuclear de família como conhecemos hoje dos meios tradicionais não fosse ideologia, como se fosse o modelo correcto e absoluto de funcionar. Não… não é. E a cada dia descobrimos isto… A família nuclear cis-hetero-mono-normativa é um ideologia colada ao patriarcado que atenta aos direitos fundamentais das pessoas, nomeadamente mulheres e pessoas no espectro feminino (trans ou não). Essa é a ideologia vigente que vai contra todas as liberdades individuais em nome da manutenção do poder de determinadas estruturas políticas e pessoais. Por isso, não, não estamos propagar uma ideologia de género, estamos a dar oportunidade às pessoas de serem quem são.
Dani