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Quando a estranheza te impede de ser Monstra

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 17 de setembro de 2020 · 8 mins read
Janela molhada sem visibilidade para a rua
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Ser monstra é um direito, ser monstra é um caminho, ser monstra é transformar os meus monstros interiores, os meus medos, as minhas dúvidas e as minhas incertezas. Para ser monstra é preciso visibilidade, é preciso existir, é preciso viver… por fim, é preciso realizar. Ser monstra é um direito, ser monstra é um caminho, ser monstra é, também, transformar aquilo que é normal naquilo de que me quero afastar.

Sou monstra e reclamo o direito a ser monstra.
Sou monstra e reclamo o direito a existir.
Sou monstra e reclamo o direito a viver.

Há vários anos que na minha vida começaram a acontecer transformações consideráveis. Físicas, mentais e emocionais, estas transformações têm vindo a moldar a forma como penso, a forma como faço e estou presente no mundo. Num artigo anterior falei de como comecei e continuo a viver na fronteira, num espaço de ninguém (aqui). Como o meu corpo e a minha identidade estão fora do discurso, fora das histórias, fora das representatividades e dos espaços, públicos e não públicos. A minha existência está determinada por um e só um modo de ser: não existir. As dissidências não existem, são meros seres fora das fronteiras, determinadas pelo limbo da presença na realidade. Corpos trans, corpos não-binários, são para não existir. Corpos trans, corpos não-binários, são para estar no silêncio, no fundo da cadeia da existência. Porquanto: estas pessoas não existem, estas pessoas não são pessoas. São as monstras da sociedade.

Desde o começo das minhas consultas na sexologia, no meu limbo de existência, que as dificuldades que me foram apresentadas foram imensas. Por quê? Porque reclamo o direito a ser monstra, reclamo o direito a ser quem sou pelo que sou e pelo que desejo ser. Uma monstra inquieta e profundamente desconfortável com o espaço da homogeneidade, da realidade construída, do destino e das normas institucionalizadas.

Até conseguir mudar o meu nome no Registo Civil foi um processo moroso, fui avaliada em todos os aspectos. Uma avaliação tangível num mundo das cisnormatividades, mas um avaliação cruel no mundo das dissidências. Porém, não fui avaliada pela minha felicidade ou pelo meu bem estar: pelo contrário, afirmar-me feliz era sinal de que afinal não podia ser monstra suficiente. Todo o meu mundo caiu no escrutínio da medicina: a minha roupa, a minha maquilhagem (ou ausência dela), o meu calçado, o formato do meu corpo, os meus desejos, as minhas aspirações, o meu percurso profissional e académico. Que monstra é engenheira? Que monstra é cientista? Que monstra vive em sintonia com o seu corpo, não o negando? Que monstra diz que quer ser quem é sem imposições, sem restrições e sem padrões?

“(…) Observações: tem continuado a evolução normal… acontece que está envolvido numa relação lésbica.(…)”

“(…) O cabelo está cada vez mais à mulher (…)”

“(…) questões a ponderar : o processo de transição é ainda muito incompleto (…)”

“(…) as nossas colegas de equipa acham que nenhuma mulher se vestia como ele. Assim, usava uns sapatos desadequados para mulher, roupa masculina; cabelo curto e sem maquilhagem (…)”

“(…) Já mudou 10 vezes de cor de cabelo (…)”

Do ponto de vista de quem merece existir, as monstras não podem constituir família, não podem ser amadas nem amar fora do contexto da monstruosidade. Uma monstra vive só, vive sem amor e abandonada, chutada para o silêncio e para a invisibilidade, o insulto e o isolamento. Ao desejo de no futuro poder haver a possibilidade ou não de desejar ter uma criança com os meus genes, depois de meses, tenho de usar o argumento da cirurgia genital (e não apenas a esterilização hormonal) para poder fazer criopreservação de gametas: um direito que assiste a qualquer pessoa, mas não às monstras. As monstras não podem constituir família, não podem ser amadas nem amar fora do contexto da monstruosidade. A monstra apenas quer preservar a sua masculinidade dessa forma… porque na realidade a monstra não é quem diz que é.

Decido que quero despachar procedimentos burocráticos e, como mandam os actuais processos, envio duas avaliações médicas que declaram a veracidade da minha monstruosidade para a Ordem dos Médicos, mais uma vez, submetida a uma avaliação, cis-centrada, por pessoas que nunca vi, nem me conhecem (ou talvez sim, dos jornais e das revistas). Após longa espera: afinal não sou quem digo que sou… não o sou suficientemente. O meu pedido é rejeitado.

“(…) a Competência em Sexologia Clínica da Ordem dos Médicos analisou o seu pedido (…) tendo decidido que o mesmo não merece parecer positivo, dado que no relatório, apesar de uma avaliação muito completa, não fica estabelecido, de forma inequívoca, o diagnóstico de disforia de sexo. (…)”

Submeto-me a uma terceira avaliação para complementar as duas anteriores, novamente para a Ordem dos Médicos, mais outra avaliação, cis-centrada, por pessoas que nunca vi, nem me conhecem (ou talvez sim, dos jornais e das revistas). Após longa espera: afinal já sou quem digo que sou… passei a ser suficiente. (Em quantas avaliações já vamos?)

“(…) informamos que a direcção da Competência de Sexologia da Ordem dos Médicos emitiu parecer positivo ao pedido de autorização (…)”

Arbitrariedade de quem avalia, como se uma pessoa pudesse ser avaliada por singelas características construídas socialmente num mundo de terror e violência. Arbitrariedade de quem avalia, como se a minha identidade, a minha experiência pessoal não fosse suficiente. O médico sabe… a pessoa cis sabe mais sobre mim do que eu mesma.

Passam anos em tratamento hormonal, idas e vindas a consultas, locais onde é preciso ter ousadia de falar, ousadia de contestar… a dúvida da minha existência está aqui sempre presente, em todos os momentos. Só, acompanhada, na rua, no hospital, etc… a monstra é avaliada a qualquer segundo da sua vida. Porque a monstra não deveria existir.

Após um longo processo de espera por uma consulta de cirurgia, eis que ela chega. Animada, esperando que não iria encontrar mais obstáculos… afinal, tudo parecia começar a correr melhor. Acreditava eu.

“Já tem autorização da Ordem certo? - Sim. - Então vem fazer a cirurgia genital? - Não, venho só fazer mamoplastia. - Não pode, nós começamos sempre pelas genitais, se não é estranho sabe, fica estranho… começamos sempre com as genitais. - Com a estranheza não tenho problemas, com a estranheza decido eu. É esta a minha decisão.”

O meu corpo é fronteiriço, mas continua a estar nas mãos da opinião de quem não entende o que são as nossas vivências, as nossas realidades. O que são as nossas necessidades e o nosso direito a existir. Porque a monstra, a monstra não pode existir, a estranheza de ser monstra é contra-natura, é quebrar a falsa normalidade que nos vendem, que nos impingem desde que somos crianças.

O meu corpo é fronteiriço, mas continua a ser comparado a corpos cis. Eu não me quero comparar a corpos cis, eu não sou cis. Mesmo que, segundo a apreciação, eu tenha mamas maiores que muitas mulheres cis… Este referencial não me serve, este não é um argumento. Esta não é uma apreciação clínica, é opinião pessoal. Novamente, sigo para mais uma avaliação do director de serviço, um homem cis que nunca vi e que nem me conhece (ou talvez sim, dos jornais e das revistas). Novamente serei alvo de apreciação, de decisão e de perda de autonomia. O meu corpo deixa de ser meu, é um produto de experimentação médica, de normatização, de limpeza estética: porque na realidade, monstras não podem existir.

Às vezes pergunto-me sobre o que estudam pessoas cis quando fazem estudos sobre a transfobia que afecta a comunidade trans e não-binária. Uma transfobia vista à luz do critério cis, do critério da normatividade: o sujeito trans como objecto desse projecto de critério, o sujeito trans que não beneficia nada do estudo sobre a sua própria objectificação. Faz-me falta, faz-me falta estudos sobre pessoas cis, estudos sobre os seus processos de transfobia: mudar o referencial. Não são as pessoas trans e não-binárias, agentes da pluralidade e diversidade o objecto de estudo, são as pessoas cis e a sua manutenção do poder através da homogeneização dos corpos e das identidades. São as pessoas cis que devem ser estudadas. Porque são elas como são? Porque seguem elas a norma, porque não têm atitude crítica, porque olham sempre para nós como as monstras da sociedade.

Reclamo o meu direito a ser monstra
Reclamo o meu direito a ser estranha
Reclamo o meu direito a ser plural e única

Porque esta monstra está aqui, esta monstra existe e só isso determina a minha existência.

Dani

Imagem: Poor Visibility - Heather F

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma