Acordas pela manhã. Levantas-te, tomas o teu pequeno almoço. Finalmente estás a tirar dois dias de descanso do trabalho. É fim de semana. A semana foi dura, muita exigência energética e muita concentração. Problemas à parte, não foi uma má semana de trabalho. No fim de semana chegam outras demandas e outros projetos, pessoais e não pessoais. Pequeno almoço, diário de sono… diário de sentires. A calma prevalece. A tranquilidade invade o teu corpo… sentes-te na calma da vida. Os gatos brincam… nada mais. Por fim, abres 5 minutos as redes sociais, o suficiente para ler o que não queres ler, uma pequena coisa, mas bem demonstrativa “doentes mentais são pessoas que não podem trabalhar e vivem sempre dependentes de outras pessoas”… Infelizmente estes comentários capacitistas circulam todos os dias a qualquer momento.
Tinha 17 anos quando tive o primeiro internamento, 19 quando tive o segundo internamento. Felizmente, como já referi em artigos anteriores, comecei a ficar mais estável aos poucos. Os diagnósticos não me definem, mas ter um referencial ajudou-me a entender um pouco o meu comportamento e a procurar maior estabilidade emocional. Um processo que demorou anos. Ou pelo menos, há coisas que senti, que não gostaria de voltar a sentir, demasiado violentas e difíceis. Demasiado destruidoras e incapacitantes.
Nessa época, eu própria acreditava que nunca iria ser capaz caminhar na vida com alguma tranquilidade, via-me na impossibilidade de estudar (estive três anos em Matemática Aplicada e acabei por desistir), impossibilidade de trabalhar (tinha um receio enorme de não ser capaz de estar à altura de um emprego), impossibilidade de ter relações estáveis (a minha instabilidade emocional não me permitia pensar muito mais longe), impossibilidade de uma vida independente. Em suma, eu dava-me descrédito e, na mesma linha, sentia que todas as pessoas em meu redor seguiam o meu próprio pensamento. Seria uma pessoa incapaz e incapacitante. Seria um peso relacional permanente.
O estigma para a saúde mental assim nos ensina e, neste mês da saúde mental, é importante continuar a sensibilizar parar a multiplicidade de experiências que existem. O estigma ensina-nos que passamos a ser pessoas de cidadania de segunda, passamos a não ter responsabilidade e capacidade de falar dos nossos problemas, das nossas alegrias e das nossas vivências. O estigma ensina-nos que o mundo acabou para nós. Como me chegaram a dizer “és doente, não tens direito a opinião” entre outras coisas piores. O estigma também nos causa resistência a avançar e a lutar por melhores condições. É difícil navegar num mundo onde todas as pessoas acreditam que nós não somos nada.
É público alguns problemas que atravessei. Tenho sido muito transparente em escrever e partilhar as minhas experiências, as minhas vivências, os meus sentires, mesmo quando me custa imenso. Porém acredito que nós só conseguiremos recuperar um lugar quando houver consciência da nossa existência como seres humanos plenos. Com experiências próprias e com formas de ver o mundo muito subjectivas.
Questiono imenso os processos psiquiátricos e a violência que exercem sobre as pessoas e, sobretudo, sobre algumas pessoas. Pergunto-me constantemente se haveriam outras ferramentas mais humanizadas para proporcionar uma vida estável. Porém, num mundo em que vivemos, numa sociedade que está doente e moribunda, manter-nos à tona torna-se uma urgência e uma necessidade premente. Tudo o que nos trás estabilidade acaba por ter um impacto enorme. A toma de medicação para mim tem sido um factor de estabilidade, se critico esta toma? Critico, mas neste momento não encontro outra solução. O estigma vai continuar a rondar os nossos corpos enquanto não houverem processos educativos bem desenhados para a população em geral. O estigma vai continuar a matar muitas das nossas pessoas por se sentirem sós numa batalha imensa. O estigma vai continuar a ferir muitas das nossas pessoas por se sentirem à margem e segregadas da realidade e da comunidade. O estigma vai continuar a dilacerar sentires de muitas das nossas pessoas por se não se sentirem escutadas e compreendidas.
O estigma mata.
O estigma fere.
O estigma dilacera.
É por isso que escrevo e continuarei a escrever. A partilhar o que me vem da alma. Não o afirmo pelo racional, mas pelo emocional. Escrevo do coração. As doenças invisíveis, como as doenças do foro psicológico são duras e afectam transversalmente todas as vivências de uma pessoa. Porém, não fomos, não somos, nem nunca seremos pessoas de cidadania de segunda.
Merecemos mais.
Merecemos políticas públicas efectivas que combatam o estigma, que combatam a precariedade emocional, que sejam desenhadas com a contribuição de vivências reais e concretas.
Merecemos mais.
Merecemos uma revolução social, onde se aprenda sobre capacitismo, neuro divergência e muito mais… onde tenhamos consciência da sociedade podre e desmaiada em que vivemos actualmente, destruída pelo sistema capitalista, colonialista e patriarcal.
Merecemos mais.
A sociedade mata.
A sociedade fere.
A sociedade dilacera.
Dani
Imagem: Solidão - Johnny Kamigashima