Hoje celebra-se mais um Dia Internacional da Visibilidade Trans.
Para mim, este foi, é e será sempre um dia de reflexão, entendimento e referenciação do meu lugar no pessoal e do meu lugar na comunidade. Não posso falar por outras pessoas, mas posso falar sobre a minha experiência e sobre aquilo que sinto relativamente a este dia. Apesar das muitas conversas, reuniões, marchas e atividades em geral, é sempre um dia que me deixa melancólica e com vontade de me recolher no meu espaço individual. É um dia que me faz trazer à memória o meu percurso e aquilo que tenho conseguido (e não) construir, mas também, aquilo que se tem conquistado (ou não), enquanto comunidade e colectividade.
Penso e volto a pensar.
As memórias corporais são intensas e quero deixar-me à possibilidade de as sentir, de sentir as marcas que tenho no corpo e de sentir as minhas próprias marcas identitárias. Não foi, não é, nem será um percurso fácil, mas estamos aqui em vida. Para existir, resistir e fazer a revolução. Atualmente, sinto que um dia de visibilidade implica mais do que ter um espaço-tempo para conquistar a esfera pública e estar visíveis nesses lugares. Implica um processo de reconhecimento interior sobre quem somos, o que podemos fazer, ou não e de questionamento sobre os nossos privilégios e lugares na sociedade – o que esta no nosso controlo e o que não está. Infelizmente muitas coisas saem da nossa esfera de controlo e isso tem implicações no dia a dia da comunidade.
Um dia de visibilidade, no meu ponto de vista, não deveria ser o objetivo, mas sim um efeito da constante resistência, resiliência e expressividade que vamos tendo ao longo de todo(s) o(s) ano(s). É por isso que acredito que este dia deveria resultar de um processo de construção coletiva ao longo do(s) tempo(s). As políticas mudam, as pessoas intervenientes mudam e o público alvo das nossas ações também muda. É por isto e por muito mais que também sinto uma solidão imensa neste dia, uma solidão pesada e cheia de ideias em tornado. Esta decantação dos meus processos internos resultam de uma falta de espaços de construção política coletiva que não tenham marchas e/ou eventos concretos como finalidade, mas como construção de uma comunidade mais resiliente e mais una. Não acredito, nem quero acreditar, na unicidade política. Porém, acredito que, dentro das divergências é possível criar pontes de criação e de desenvolvimento coletivo.
Neste contexto, para mim, assumir este meu trajecto implica, de certa forma, lidar com dúvidas e incertezas. Escutar, aprender e situar-me. Um percurso que muitas vezes gera desconfortos e incomodidades. Gera contradições e incoêrencias. Caminhar ao longo do(s) ano(s) neste percorrido tem sido um processo enriquecedor, mas avassalador. Desta forma, sinto, e aqui vem das emoções e das entranhas, que o dia da visibilidade é mais do que um dia, é um efeito colateral de movimentações mais complexas, maiores e mais ricas. Precisamos de nos encher de experiências, vivências e sobrevivências. Precisamos de nos nutrir das dúvidas e construir pensamento e política desse esse lugar.
Nós, pessoas trans, não-bináries, de género diverso e/ou em questionamento identitário temos um papel fundamental na nossa sociedade. Acredito que será possível fazer mais e melhor e será possível libertar-nos das amarras de uma sociedade cis-centrada e opressora. Acredito que será possível criarmos mais conhecimento que seja desenvolvido por nós. Sim. Porque precisamos criar história, conhecimento e pensamento. Precisamos estar nas academias, mas precisamos, também, da experiência vivida, as emoções, das dores e das felicidades.
Precisamos.
Precisamos, porque acredito que podemos ser (e já somos) um movimento revolucionário. Questionar os pilares basilares da nossa construção social euro-centrada é o princípio da decadência da centralidade institucionalizada. Questionar quem nós somos não é só um processo de resistência, é um processo libertador dos nossos mais profundos sentires.
Feliz dia, com um traço de amargura, da Visibilidade Trans.
Dani
Imagem: Dani Bento