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Lugar de vulnerabilidade

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 29 de outubro de 2019 · 4 mins read
Lugar de vulnerabilidade
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Hoje mirei, mirei uma luz que se vai aproximando. Estou a caminhar, devagar, mas a caminhar. É um bom princípio reconhecer algum percurso que se vá tomando, ainda que aparentemente pouco. No entanto, muitas vezes é difícil ter essa perspectiva, a doença cega-nos, deixa-nos vulneráveis ao próprio estar e à própria consciência desse mesmo estar. Sei, com alguma claridade (no momento em que escrevo estas linhas), que o percurso é lento por natureza, é cheio de altos e baixos, momentos em que se recupera e outros em que aparentemente tudo volta para trás. Neste instante reconheço esse processo.

Vulnerabilidade

Muitas vezes pergunto-me como seria estar a meu lado nestes momentos. Como seriam esses mesmos momentos, de desespero, de desânimo, de tristeza e mau estar, de fraca energia, de cansaço e fadiga… como seriam estes momentos a meu lado. Que diria eu a mim mesma? Este é um exercício de reflexão sobre os meus próprios sentires e de como os espelho. É uma reflexão sobre a dureza que sinto sobre as pessoas que me acompanham, sobre o cansaço que se abate sobre elas, sobre o seu próprio estar e sentir. É uma reflexão de mim para mim.

Durante muitos anos escondi-me durante as minhas crises, isolava-me, permanecia na escuridão até melhorar. Resultado: as crises eram longas, difíceis e muito solitárias. Negava a aproximação de quem quer que seja, sentia culpa pelo meu estar e não queria de algum modo perturbar a vida diária de ninguém, não queria estar nesse papel de vulnerabilidade. Desta vez foi diferente. Aprendi que se eu estivesse ao meu próprio lado eu quereria saber de como estava, das minhas dificuldades, do que se estava a passar, de poder reconhecer este meu lado. Quereria estar presente, quereria colaborar na minha recuperação, sentir-me-ia mais ligada a mim mesma… procuraria reconhecer a coragem da vulnerabilidade.

Aprendi que deveria pedir-me ajuda, que eu quereria receber esse pedido de ajuda. A última crise major que tive foi há aproximadamente três anos. Reconheço que é uma conquista conseguir estar três anos relativamente estável quando, antigamente, as crises eram constantes. O meu instinto de sobrevivência não me permitia pedir ajuda. O meu instinto de sobrevivência dizia-me que pedir ajuda era entender que afinal não era capaz, que afinal não teria força nem coragem para avançar. Confirmava a minha máscara, dáva-lhe vida. A máscara do sorriso, da pedra que vivia em mim.

Nestes últimos anos, a par de muitas outras coisas, tenho aprendido que expor a minha vulnerabilidade é um acto de coragem e de intimidade. É um acto de conexão com a outra pessoa. Tenho aprendido que esta conexão fortalece os laços, ao contrário do que eu pensava, que os fragilizava. O lugar de vulnerabilidade é assustador, é assustador quando se vive em modo de sobrevivência, quando nos desenvolvemos no pânico da solidão. É assustador quando, nunca sociedade como a nossa, aprendemos que a fragilidade, a tristeza, o desespero são bichos maus os quais temos de banir da nossa vida, mesmo que seja fugindo deles. É assustador porque aprendi que fragilidade é fraqueza. Aprendi durante anos que os meus problemas são meus e apenas meus e sou totalmente responsável por eles.

Não era isso que eu quereria de mim mesma… não quereria responsabilizar-me de tudo, culpar-me, encher-me desse peso
Quereria que eu me partilha-se, que me desse a mão e pudesse sussurrar ao ouvido “não estás sozinha”
Quereria que encostasse a cabeça ao meu ombro e pudesse chorar as suas mágoas
Quereria estar
Quereria ouvir, simplesmente ouvir
Quereria que não me senti-se só, que me senti-se compreendida no meu estar, que a minha experiência tivesse valor

No fim, acredito que estou a aprender e, para mim, este processo é totalmente novo. Ter uma rede de apoio, ter pessoas próximas, ter pessoas que estão. Ter pessoas que dão o seu melhor. Porém compreendo, que muitas vezes este processo também lhes é doloroso, sentir a impotência de não me poder apagar a dor, de me ver arrastada e sem qualquer perspectiva de futuro. É um processo duro. É um processo para todas nós. É um processo de conhecimento e auto-conhecimento. É um processo de manutenção do cuidado e do auto-cuidado.

Acredito que as minhas relações sairão mais fortes, mais sólidas.
Acredito que sim… que vou melhorar e tu também vou poder lá estar.

Dani

Imagem: Le repli / The fold - Michaël Korchia

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma