Lembro-me, como se fosse hoje, de há uns anos atrás estar num processo de recuperação mais doloroso, muito mais doloroso, do que estou nos dias de hoje. Mais pesado, mais violento, mais esgotante. Não era só a minha mente que estava em cacos, mas era também eu, fisicamente, que em cacos estava. Este processo foi longo, ou relativamente longo… o tempo demarca-se muitas vezes pelas expectativas e não pelo tempo do relógio. Durante esse tempo, algo permanecia: a dor. Muito ou pouco tempo, a dor estar lá, permanente.
Na altura vivia um dia de cada vez, para sobreviver uma hora de cada vez. Fazer os básicos dos básicos era para mim uma conquista a cada momento - no entanto, celebrado com muita dificuldade. Sempre achei que não estava a fazer mais do que o devido, do que se esperava que eu fizesse ou conseguisse. Esse pensamento perpétua-se constantemente. Durante a minha estadia na escola básica e no secundário sempre demonstrei bons resultados. Porém, depois do meu primeiro internamento no 12º ano, as minhas notas caíram a pique. Eu caí a pique. Na época lembro-me que muitas vozes circulavam à minha volta dizendo que iria viver na dependência, que não iria ser capaz de ser autónoma, que teria de deixar a escola e que não iria ser capaz de vir a trabalhar para ganhar alguma independência. Este era o meu estado aos 18 anos. Enclausurada no meu próprio problema. Enclausurada na minha própria vida e nos meus pensamentos. Eu não era nada nem iria ser nada.
Acabei o 12º Ano, entrei para Matemática Aplicada e Computação no IST com média de 19. No entanto as crises não paravam, o mal estar não estava completamente resolvido, não, de todo. Voltei a ter uma crise major e voltei ao internamento. Recuperei, mas lentamente. Neste tempo de recuperação fui-me cruzando com pessoas, pessoas diferentes, muito diferentes. Lembro-me, como se fosse hoje, ter pessoas no meu círculo de amizades que me diziam que, dado que eu tinha um problema de saúde mental não deveria ter direito a qualquer opinião - seria invalidada logo à priori pela minha condição - ou seja, eu não podia existir na minha autonomia, na minha existência. Vários destes episódios foram acontecendo e cheguei seriamente a acreditar nesta realidade. Eu não podia.
Por outro lado, havia quem acreditasse que este estado era apenas um estado de preguiça, de não vontade. Que o gesto de pensar positivo e andar com a vida para a frente seria o caminho para eu ficar bem - não necessitava mais do que isso - pensar positivo.
Hoje em dia percebo, dentro do possível, a minha neuro divergência. Tenho um olhar crítico sobre o meu próprio estado e tenho o entendimento sobre um caminho que devo percorrer, que ainda é necessário. Porém, foram muitos anos, mas mesmo muitos anos a sentir que não tinha espaço no mundo, a acreditar que o problema estava exclusivamente em mim e na minha incapacidade. Ainda hoje sofro consequências disso, desse processo, dessa assimilação da realidade. E o que nós aprendemos? De uma forma capacitista e sem respeito humano que pessoas neuro divergentes não são capazes, que são culpadas do seu falhanço emocional, do seu falhanço relacional e do seu falhanço social. É isto que aprendemos e que interiorizamos toda uma vida. O “atrasado mental”, o “doente mental”, o “retardado”… aprendemos a ser menos, porque fazem-nos crer que iremos ser sempre menos.
Num mundo em que a saúde mental é completamente desprezada é necessário levantar a voz - dizer que existimos e que não somos menos. Que as nossas dificuldades não são preguiça ou má vontade, que os nossos ritmos são diferentes e, que sim, também sofremos angústias pelo mundo em que vivemos, que sim, sentimos, não somos objectos inertes e sem vida. A falta de informação é catastrófica, a falta de compreensão também. Porém, nós estamos cá e vamos cá continuar.
Por dias melhores e cada vez melhores, lutamos sempre que podemos.
Dani