Construir uma identidade e coexistir com a mesma é um exercício contínuo e exigente. O auto conhecimento é uma peça fundamental para explorarmos todas as nossas potencialidades nas demais aéreas. No entanto, e de uma forma pessoal, entendo que esta evolução só se torna proeminente quando estabelecemos laços, ou não, com a sociedade que nos rodeia. A nossa identidade ganha forma quando é espelhada para o mundo, a menos que fiquemos inteiramente no nosso interior, o que é possível… mas doloroso - sejamos nós quem e de que forma formos.
Na minha opinião, parte de ser trans passa, também, pela reflexão da sociedade em nós e inerente a isto estão os possíveis problemas relacionais. Cresci a sentir uma sensação estranha sobre o meu “eu” e que só há relativamente pouco tempo (no sentido em que me é possível ter uma consciência precisa do que sinto) consegui decifrar na integra. Uma angústia constante de que algo não estava certo. Do meu ponto de vista interior, a maioria das relações que tive (amizade ou namoros) tornaram-se sofridas, indirectamente, pois existia uma parte de mim que era permanentemente invisível.
Deste modo, qualquer tentativa de relação supõe um entendimento sobre esta situação pessoal e, infelizmente, a conformidade ou passibilidade torna-se sistematicamente uma exigência. Desenvolver-me neste registo é bastante penoso e este estado absorveu grande parte da minha vivência e da minha experiência enquanto criança, adolescente e jovem adulto. Felizmente, algo que agora vou construindo dia a dia.
Há alguns meses, entendia que dificilmente iria conseguir relacionar-me com alguém nos próximos tempos. Não pelo facto de eu não me apaixonar (ou não o querer), mas porque a minha construção identitária é esta. Sendo mulher trans, pansexual e poliamorosa, a probabilidade de vir a sentir amor devolvido (na minha perspectiva) era bastante baixa (uma identidade, orientação sexual e relacional que são marginalizadas e suprimidas). Permanentemente era alvo do comentário de que só poderia vir a estar com alguém que fosse trans (só se estragava uma casa… - nada transfóbico) ou a famosa frase “até consigo ter uma amiga trans, mas uma relação com alguém assim nunca pois não seria um homem ou uma mulher de verdade…” (felizmente, para mim, esta é uma interrogação que não coloco no outro). Por fim, ainda muitos os convites pela curiosidade que me levam a sentir objecto sexual ou fetichista e não pessoa…
No entanto, apaixonei-me por uma mulher cis-género, hetero e monogâmica. O pânico tomou conta de mim… seria uma relação que estaria terminada à partida que acabou a tornar-se na minha maior surpresa positiva. A verdade passa pela própria dúvida, neste caso a dúvida da minha companheira associada a uma realidade que não conhecia. Num mundo cheio de estereótipos e opressões, seria uma relação condenada. Até hoje estamos felizes e sem restrições pessoais. Uma relação onde a comunicação e empatia funciona como meio para desmistificar muitas questões, pois para ambas existem situações novas. Não posso negar o facto de me sentir feliz por saber que é possível alguém desconstruir-se a si mesma perante uma situação nova, permitir-se a sentir, mesmo quando esse sentir é muito diferente do habitual. Fico feliz por sentir que sou amada por todo o meu quadro pessoal e não apenas sexual (ou potencialmente sexual). Estas surpresas pessoais são sempre possíveis e este é um claro exemplo que a nossa construção pessoal constante pode-nos trazer momentos felizes. Como num artigo anterior referi, não acredito que sejamos fotografias, mas sim mutáveis.
Independentemente de tudo, sinto-me numa relação onde sou eu própria sem medo e sem constrangimentos e sou amada por isso.
Dani