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Estendida no sofá, acho-me...

Daniela Filipe Bento Daniela Filipe Bento Seguir 10 de dezembro de 2024 · 4 mins read
Fotografia de uma pessoa que funciona de forma mecânica
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Estou no sofá, olhos fechados, pernas esticadas, sorriso. O Emi preenche os espaços entre as minhas pernas e o sofá, o Misako dorme no seu local preferido: a cadeira. Estou no sofá, respiro, respiro profundamente e saúdo a minha travessia, o meu caminho ou o meu trajeto. Sorrio. Escorreguei e quase caí, escorreguei e quase passei o limite, escorreguei e quase, quase, quase entrava noutro período de maior complexidade. Escapei por entre as gotas da chuva de uma crise maior, escapei e sobrevivi. Fica aqui o registo para quando precisar voltar.

Escapei e sobrevivi.

Há umas semanas lutava contra um abanão profundo, contra mais uma maré de ataques de pânico, contra mais uma angústia do tamanho do universo, contra a vontade de desistir de tudo e principalmente, contra a vontade de me abandonar a mim mesma no vazio. Contra tudo isto e mais, lutei e caminhei. Mesmo quando era impossível acreditar que haveria mais vida para além daquilo que estava a sentir. Vai ciclicamente acontecer, mas quando acontece dói, e dói muito. Porém, felizmente, já vou conhecendo os meus altos e baixos - ainda que às vezes a dor é tão grande que fica difícil conseguir ver com base neste conhecimento. Mas tenho as ferramentas, construí as ferramentas ao longo de vários anos. Tenho.

Atravessei um período difícil, dissociada do meu corpo, dissociada de quem eu era e sou, dissociada da minha capacidade de viver. Era o fim da linha.

Era preciso voltar a agarrar-me a algo palpável, material e forte para me sustentar, mesmo que fosse mais uns dias. Era um dia de cada vez, um momento de cada vez, um acontecimento de cada vez, que somados ao cansaço me tornavam mais sensível e muito menos capaz de responder às expectativas: ainda hoje me custa, estou melhor, mas ainda me custa.

A conselho e sobre autonomia. Percebi que precisava forçar-me a mudar rotinas, a aproximar-me mais de mim, do meu corpo, dos meus desejos e daquilo que me fazia sentido na pele. O trauma que emana das minhas células corporais complexifica a obtenção de sensações boas ou agradáveis, são contínuas metamorfoses de uma realidade que oscila entre o aqui e o antes.

A conselho e sobre autonomia. Precisava ganhar novamente controle sobre o meu corpo e sobre o que sentia. Precisava transformar estas memórias em algo do presente. Precisava recuperar a minha auto-estima, o meu bem-estar, o meu desejo e a minha auto-percepção enquanto pessoa merecedora de felicidade e de bom trato. Precisava tomar decisões autónomas e emergentes para me conciliar com o meu corpo, para me reconectar e afirmar-me.

A ferros, mas com mais segurança a cada dia, comecei a fazer exercício todos os dias pela manhã ao acordar: algo simples, uns alongamentos, 15 minutos. Decidi que era tempo de largar os fatos de treino ainda que esteja a trabalhar de casa a maioria do tempo: estava a deixar-me ficar distante do meu autocuidado e do meu auto-carinho. Por isso, todos os dias, agora, visto algo mais complexo que não um fato de treino: voltei a usar saias e vestidos, voltei a ter mais algum cuidado com o corpo e com a forma como o trato.

A cuidado decidi que seria uma ideia promissora e que podia resultar positivo fazer uma sessão de fotografia de boudoir, desta vez, sendo eu fotografada, sendo eu a cara da imagem e do resultado final. Dada a complexidade da minha relação com o corpo, senti que podia ser um desafio bastante interessante e que poderia resultar em dois extremos: ou iria odiar por não me conseguir ver, ou iria gostar por entender as limitações de cada corpo em cada momento. Foi neste sentido que numa pesquisa no Google por pessoas fotógrafas que faziam este tipo de sessão em Lisboa, encontrei a Romana Preto. Falamos ao telefone e fiquei super entusiasmada com a possibilidade do trabalho, com a sessão e os resultados. Senti-me segura e confiante na primeira conversa que tivemos ao telefone. Fizemos a sessão uns dias depois.

No fim, quando recebi as fotos, emocionei-me. A sessão foi bastante agradável, inclusiva e cuidada. Mas tinha medo das fotografias, do que eu iria sentir ao ver-me. Porém, fiquei surpreendida por ficar surpreendida pela positiva com o resultado. Senti-me bem na sessão e senti-me feliz com o resultado, emocionei-me, pois era a primeira vez que tinha um conjunto de fotografias destas, deste estilo.

Através destes pequenos atos tenho-me aproximado de mim novamente, estou mais agarrada à vida e à possibilidade das coisas que ela nos pode trazer. Porém ainda não sinto que esteja totalmente recuperada, mas estou num caminho de ascensão ao meu bem estar e à minha auto-preservação.

Respiro novamente, olho para o Emi, olho para o Misako, nunca duvidaram, nunca questionaram quem eu era, sempre fui, para eles sempre fui, sou e serei. Agora que vou ganhando hábitos e que tenho um momento registado de como me senti conectada comigo, será mais fácil, será mais revolucionário e potente. Agora será para continuar, será para investir, será para amar-me com paciência e carinho, com ternura e cuidado.

Pois eu mereço,
Pois eu quero,
Pois eu…

Dani

Imagem: Daniela Bento - Romana Preto

Daniela Filipe Bento

Escrito por Daniela Filipe Bento Seguir

escreve sobre género, sexualidade, saúde mental e justiça social, activista anarco/transfeminista radical, engenheira de software e astrofísica e astronoma