Começo este texto sem saber bem o que escrever, mas a sentir necessidade de o fazer. Talvez dar voz a mim própria, aos meus desafios, aos meus sentires. Talvez deixar gravado como estou vivendo os últimos dias e de como vivi o último ano. Talvez para mais tarde recordar, talvez para mais tarde voltar aqui. Muitas vezes os desafios são muitos e muitas vezes a solução não é clara, outras vezes não há solução. E neste rescaldo de sentimentos, não quero abafar o meu próprio grito.
Hoje é um desses dias, um desses dias que não me quero calar. Hoje é um desses dias, que não quero cair na invisibilidade. Os meus últimos dias têm sido passados com muita dificuldade, entre estar apática, não ter vontade, estar cansada, deixar de conseguir comunicar decentemente - sentir-me anestesiada. Sentir-me a ser domada por uma força que é maior do que eu, uma força que me empurra contra o chão e quebra os meus movimentos. Quebrando-me os ossos, os músculos… a dor insana que acompanha todo este processo.
Tenho 33 anos e ainda hoje muitas situações são um desafio. Já passaram 15 anos desde o meu primeiro internamento, altura em que deixei de conseguir falar e escrever, altura em que até o simples acto de sentar era um desafio que me obrigava a um esforço mental para o conseguir fazer. Não dormia. O meu cérebro não parava e o mundo parecia andar a uma velocidade que eu não conseguia acompanhar. Não tinha uma realidade, tinha várias e saltava continuamente entre mundos, muitas vezes com dificuldades em retornar à minha realidade de origem. Nessa época, acreditava que a minha loucura não tinha solução. Sentia que nunca iria conseguir estudar, trabalhar ou ter uma vida independente. Sentia que a minha vida tinha acabado ali e questionava-me constantemente se valia a pena continuar.
Aos 20 anos tive o diagnóstico que me acompanha até hoje, Bipolaridade e traço de Distúrbio de Personalidade Borderline. Para mim funciona como um referencial, não como uma realidade absoluta, mas que me tem permitido ter ajuda médica/terapêutica adequada e melhorar a minha vida. Os meus primeiros anos em Lisboa foram de conflitos interiores imensos, crises catastróficas, idas para o hospital, manias agudas e depressões de meses. Muitas vezes acreditava que nenhum tratamento iria resultar. Nada iria resultar. Mais: aos poucos, a vida passa a ser feita no silêncio, na vergonha e na culpa. Uma máscara que nos colocamos sorridente, funcional. Uma máscara que nos mantém numa posição de relativa estabilidade quando estamos na presença de outras pessoas. Este silêncio não é, muitas vezes, propositado, é uma consequência. Uma consequência da dureza de ter um problema de saúde invisível. A solidão de carregar uma dor continuamente. O medo contínuo de errar, de tirar a máscara e alguém perceber.
Muitas vezes dei por mim a falar de cem assuntos diferentes num minuto, a uma velocidade descomunal, sem ter sentido, sem conseguir articular um pensamento. Sentir-me euforicamente feliz, sentir que não precisava comer, dormir ou sequer beber água. Poderia trabalhar 24 horas por dia, poderia dar a volta ao mundo a correr e a voar que ninguém me conseguiria impedir. Tudo era fácil, tudo era acessível, eu conseguia tudo. Tudo era perfeito, rico. Até me conseguiria dividir em dez pessoas e estar em dez sítios diferentes. Tudo, tudo era possível. No instante a seguir - a morte. O mundo ficava escuro, a minha fala interrompida, sem conseguir articular uma palavra. O desespero, a paranóia, as perseguições, a não vontade, o estar deitada 24 horas por não acreditar no mundo, por sentir que a minha única solução era morrer. Sem esperança, sem acreditar, a apatia e a anestesia. A casa que nunca era limpa e o esforço sobrehumano para conseguir fazer tarefas de higiene básicas como lavar os dentes ou tomar banho. A cama era o meu mundo e viver na escuridão também.
Durante anos, os meus meses foram passados a saltar de um estado para o outro, sem interrupção. As minhas relações eram problemáticas, não as conseguia manter. É um caminho solitário, muitas pessoas vão embora. Confundem o estado de saúde com a personalidade. A doença estava a ditar quem eu era. Por outro lado, se fosse proactiva em explicar o que tinha, era declarada incapaz naquele momento. “Tu tens problemas mentais, não deverias ter direito a qualquer opinião” diziam-me. A minha autonomia era constantemente atacada, porém, também ninguém estava lá. Contava apenas com o apoio de quem me acompanhava na psiquiatria e na terapia. Um efeito perverso, porque passaram a ser as únicas pessoas que conseguia estabelecer contacto.
Tinha constantemente crises, a máscara era óptima para conseguir manter um trabalho. Porém às vezes acontecia não aguentar mais, e a máscara queimar. O resultado era muitas vezes quase ficar ou até mesmo ficar sem trabalho. Deixava de ser de confiança. Isto reforça o silenciamento. Queres ter pessoas amigas, não falas da tua saúde mental, queres ter um trabalho, não falas da tua saúde mental, queres progredir na escola, não falas da tua saúde mental - melhor, nunca falas da tua saúde mental.
Com o tempo as minhas crises foram estabilizando, ficaram mais previsíveis, e menos intensas. O trabalho terapêutico constante e a medicação eram a minha fonte de sobrevivência. Ter crises com alguma gravidade de notar tornou-se mais difícil, ainda que possível. Porém, comecei a acreditar que era possível, um trabalho mais estável, estava a estudar, estava a conseguir ter autonomia. A minha estabilidade trouxe-me melhores relações. Mas esta situação criou outro efeito perverso: sabia que a estabilidade do trabalho, da escola, das relações acontecia porque eu estava equilibrada - ou assim pensava. Por isso reneguei-me paro o silêncio. Mesmo quando doía, deixava-me ficar com a minha máscara poderosa da funcionalidade.
Só nos dias de hoje estou a aprender a conseguir dizer que tenho um problema de saúde e pedir ajuda. Ainda nos dias de hoje tenho medo de o fazer: nas minhas relações, no meu trabalho e na minha escola. É um processo duro. A vergonha, a culpa, a exigência de estar bem, de estar apta e capaz. A vergonha de muitas vezes não conseguir fazer o elementar, não conseguir acompanhar a realidade, de sair fora dela. A culpa de querer estar bem e não conseguir, querer ser optimista e não conseguir. A incapacidade de me sentir incluída, parte de algo… por sentir que a minha voz não tem valor. É no silêncio que acabo muitas vezes a viver, antecipando o distanciamento, antecipando a dor maior. Porém, a cada dia, começo a perceber que posso viver a minha fragilidade, que não tenho de ter culpa ou vergonha. Existe.
É, infelizmente, neste registo que muitas pessoas vivem, de máscaras funcionais, escondendo os seus problemas por se sentirem incompreendidas, vítimas do estigma, da rejeição social e do descrédito de si mesmas. Por isso se torna tão importante marcar este dia de sensibilização para um problema que é real, um problema que afecta demasiadas pessoas no seu dia a dia, na sua vivência e na sua procura pela felicidade.
Sei que os próximos dias serão difíceis, mas sei que vou melhorar. Porém, queria deixar de estar escondida, de sofrer em solidão. De lutar contra mim, de lutar contra o mundo sem amparo. Não estar constantemente à beira do precipício, não andar constantemente de montanha russa emocional. Porém, criar essa rede de apoio é um trabalho contínuo, constante e que requer alguma paciência, principalmente de mim para mim.
Por isso, há esperança. Sempre. Quero recordar estas palavras.
Dani
Nota: Este texto foi escrito ontem, dia 10 de Outubro, mas só hoje, dia 11, consegui ter capacidade de o publicar.
Imagem: Counseling Today - Finding balance with bipolar disorder