A experiência de dar um salto para fora do sistema é muitas vezes assustadora. Assustadora e rica ao mesmo tempo. Há vários anos, afirmei-me enquanto mulher trans, mais tarde, com mais conhecimento e com mais introspecção afirmei-me enquanto mulher trans e não-binária: agénero, demi-rapariga. Este não foi um processo simples, foi um caminho de reconhecimento e entendimento do meu lugar na sociedade, do meu lugar no sistema, ou então, do meu não lugar. É por isso que, num dia como hoje, no Dia Internacional das Pessoas Não-Binárias (ou Dia do Orgulho Não-Binárie) é tão importante visibilizar histórias e trajetórias que promovem a diferença e a diversidade.
O ano passado escrevi “Dia Internacional das Pessoas Não Binárias 2020”:
“É com um sentimento de orgulho que nós nos afirmamos, que reclamamos a posse da nossa identidade e da nosso forma de estar no mundo, somos pessoas não binárias, com orgulho, com engajamento, com empoderamento. Somos.”
As histórias e os relatos de pessoas que vivem neste chapéu da não-binariedade são muito diversificados. Não há uma só forma de ser uma pessoa não-binária, há tantas quantas as pessoas que existem no mundo ou, até mais. A não-binariedade identitária é algo que vai para além daquilo que apresentamos ao mundo, é um processo interno de autoconhecimento e auto realização. Não deixa de ter, também, um encadeamento político.
Quando afirmamos que o género vai para além do binário (e da correspondente forma de opressão na forma de binarismo), estamos a desafiar as categorias mulher/homem como existências primárias, universais e transversais às sociedades. Uma pessoa não-binária é aquela que não se revê na exclusividade de ser mulher nem na exclusividade de ser homem. Estas identidades situam-se na neutralidade, ambiguidade, multiplicidade, parcialidade, ageneridade, outrogeneridade ou fluidez.
O binário de género, como o conhecemos, é resultado de um processo colonial e de apagamento histórico de múltiplas sociedades e formas de estar no mundo. É por isso importante descolonizar o nosso pensamento quando falamos em identidade. Entender o contexto onde esta forma de opressão nasce e reside é importante para entender o exercício de viver fora desse sistema. E quando falamos em descolonizar o nosso pensamento, também falamos em descolonizar as nossas identidades e os nossos corpos. Ver o nosso direito à autodeterminação consagrado e protegido.
O nosso corpo é o nosso território, o nosso corpo é a nossa casa e devemos-lhe a sua segurança e a sua integridade. Uma integridade que começa muitas vezes por nos reconhecermos e por sabermos quem somos. Tal como mulheres sabem que são mulheres (e homens o mesmo), pessoas não-binárias também o sabem. A grande diferença é que mulheres/homens crescem num mundo onde têm representação (com maior incidência nos homens, não fosse o mundo sexista e misógino), por outro lado, pessoas não-binárias não se vêem representadas em lugar algum ou, então, vão sendo apagadas da história. O sistema privilegia quem se situa neste binário. E por isso dizemo-lo cissexista (onde pessoas cis são pessoas que não são trans nem não-binárias).
A vida de uma pessoa não-binária começa, infelizmente, sempre dentro de um mundo binário e é aí que o choque começa. A violência de não existir em lugar algum é um motivo claro para um crescimento em dificuldade. O não reconhecimento, a violência de género, o policiamento de género, os discursos de ódio e os actos de ódio são algumas das dificuldades que enfrentamos. A resistência é um acto contínuo na nossa vida. Viver é resistir. Viver é enfrentar.
O reconhecimento social destas identidades também trouxe consigo mudanças estruturais na forma de comunicar. Faz-nos ter consciência que os discursos inclusivos vão para além do a/o, a(o), professora ou professor. Mas sim, que devem ser estruturados e restruturados de uma forma interseccional para incluir todas as pessoas e também serem reformulados para que sejam construídas expressões não mono-cis-heterossexistas, interfóbicas, capacitistas, racistas, xenófobas, gordofóbicas, entre outras formas de violência propagada pelos nossos discursos do dia a dia.
Para mim, enquanto pessoa não-binária, é ter consciência de que estou cá para participar, nos meus limites, na transformação social, num tecido de reconstrução do mundo, de trazer as margens para um centro saudável, seguro e digno. Enfraquecer o sistema binário e reconstruir um sistema que seja realmente inclusivo.
Por isso é altura de exigir muito mais.
Por isso é altura de fazer garantir os nossos direitos plenos.
Por isso é altura de colocar as nossas vivências num lugar de existência.
Por isso é altura de colocar os nossos discursos no plano da nossa voz.
É altura do nosso orgulho se opor definitivamente à invisibilidade e vergonha.
É altura do nosso orgulho ser contínuo e resistente.
É altura do nosso orgulho mostrar que existimos e sempre existiremos.
A experiência de dar um salto para fora do sistema é muitas vezes assustadora. Assustadora e rica ao mesmo tempo.
Dani
Imagem: Digital / Binary - Mark Round