Estas últimas semanas têm sido emocionalmente poderosas. Durante a última semana estive num training em Itália, no meio da floresta, longe da comunicação diária a que estou sujeita. Apenas, e só, com todos os elementos do grupo que estavam presentes. Pessoas de várias nacionalidades. Tocou-me a facilidade de troca de experiências que aconteceu, tocou-me poder falar de mim sem receios, tocou-me poder expressar os meus sentimentos em relação a várias questões sem ser julgada… mesmo sendo um espaço com diferentes pessoas - senti-me segura como não me sentia há muito tempo num espaço misto. Aproveitei também para ter os meus próprios momentos de reflexão. Uma das coisas que achei bastante positiva foi que, apesar de os dias serem bem estruturados numa vivência comunitária, me foi possível ter o meu espaço próprio onde podia canalizar as minhas energias e repensar em muitas questões do meu dia a dia.
É um facto, eu faço activismo de coração. Não consigo desconectar a minha emoção da minha vivência e da minha luta política diária. O meu sentir torna-se ele próprio uma luta. Não estou muitas vezes a discutir questões que não me tocam, mas sim questões que me afectam de forma profunda. Por isso, acabo por depositar toda a energia que tenho nestes momentos, nestas reflexões, nestes questionamentos. A minha relação com as pessoas pode e deve também ser desconstruída. Permitindo-me viver em mais segurança, não apenas em liberdade, mas em estabilidade emocional.
A minha perspectiva é sempre pessoal, intransmissível e contextual, mas enquanto pessoa que se afirma na sua identidade política e privada muitas questões irão sempre aparecer no dia a dia. Hoje em dia tenho o cuidado de tentar entender quando as pessoas têm dúvidas genuínas e com isso conduzi-las a espaços próprios para esclarecimento de dúvidas - como as tertúlias ou quando as pessoas têm momentos de curiosidade invasiva. O problema de viver num jogo da não normatividade é ser sujeita a este embate. Questionando-me se não gostaria de saltar ainda mais fora da normatividade (por questões de protecção pessoal ainda mantenho alguma ligação) e planear a minha posição enquanto agente político. Por vezes este questionamento passa pela a vontade de promover algum separatismo identitário o que me leva muitas vezes a dizer: eu não quero estabelecer relações com um mundo que é white-abled-hetero-cis-mono-normativo. Se pertences a esse mundo, não te quero comigo. Acredito que a solução é mais complexa do que esta, mas a dificuldade muitas vezes leva-me a este pensamento.
Ainda no sábado, a caminho do Porto, acabei a conversar com o passageiro que ia a meu lado no comboio, a confusão instaurou-se quando fui ao café e o fiscal perguntou pela rapariga que deveria estar ao lado dele. Quando volto: a interrogação, meto o chapéu de educadora. Não sou obrigada a tal, mas o meu bom senso tenta passar por cima disso e acabo a ser questionada pelo facto de ter “acção” ou não, se faço travestismo, se “executo serviços” ou se “faço topless” na praia. Rapidamente equaciono a minha posição e penso: é por estas razões que eu não quero pessoas hetero-cis na minha vida… tenho pena de estar a ser separatista, mas não tenho essa obrigação. No fim sou rematada com a frase “é importante sermos todos abertos quando falamos”, ao qual fica a resposta “mas quem é que afinal estava a ser inundada por perguntas de teor invasivo?”, é nesta abertura que ficamos?
Porém, este é um caso entre muitos que me passam na vida de pessoas que não conheço, que estão fora do meu espectro de acção. Logo, pessoas a quem não posso incentivar com facilidade a uma formação devida, a uma procura inteligente de informação… são uma e outra pessoa comum que não têm noção do espaço privado do outro. De quando estão a ser invasivos e a destruir um bocadinho do outro. Tudo muda quando falas de pessoas que te são próximas. A dificuldade cresce, a angústia aumenta exponencialmente e a pergunta “onde é que eu errei?” aparece por todos os sítios. Se tenho pessoas amigas que são cis e hetero e mono, tenho, se por vezes queria não os ter? Se deixarem de ser invasivos não tenho problema, mas a amizade não dá carta branca para as mais variadas situações.
Eu legalmente sou uma rapariga, independentemente da minha corporalidade, rapazes: não me digam que não podem estar comigo porque são hetero! Isso é um anulamento completo da minha identidade - podem sempre dizer que o meu corpo não vos atrai, mas nunca que é por serem hetero. É grave, é transfóbico, penoso e redutor, muito. Se me achas atraente e até me dizes que queres uma relação física comigo, não digas que agora não o fazes porque tenho nome de rapariga. Mais uma vez, estás a reduzir-me ao absurdo e apagar a minha identidade, a apagar aquilo porque luto todos os dias.
Se queres ser uma pessoa inclusiva sê-o de forma séria, não sejas como o senhor que me conhece à dois minutos no comboio. Se queres realmente ser uma pessoa inclusiva, pensa que o espaço do outro também deve ser respeitado, o mesmo espaço que tu exiges no teu dia a dia para ser respeitado. Se queres ser uma pessoa inclusiva, ouve mais do que pergunta, percebe o que é ofensivo e respeita os espaços de discussão. Respeita a intimidade da outra pessoa. Porque sim, se no teu mundo isso funciona assim, no meu não. Eu vivo num mundo de cuidado e se não o queres fazer então não pertences.
Às vezes dou por mim em modo separatista, às vezes preciso de distância da normatividade, deste meio de poder. Não quero sentir a tua pena, o teu cuidado, quero que respeites aquilo que é meu e aquilo pelo que luto todos os dias.
Sou trans, sou mulher, sou não-binária, sou pan, sou anarquista relacional, sou neuro-não-normativa, posso ser tudo aquilo que podes não estar preparada: mas aprende, sê também honesta com os teus sentimentos e dificuldades, não apenas com o meu carácter enquanto pessoa.
Dani