Queria escrever, mas não sabia bem sobre o quê… tenho um bloco cheio de notas com textos e assuntos que gostava de desenvolver, porém, a minha falta de criatividade tem dificultado esta tarefa. No entanto, todos os dias acontecem-nos coisas e, muitas vezes, são essas mesmas situações que nos levam a desenvolver o nosso lado emocional e criativo. E, a propósito dos vários trajectos que tenho feito, a veracidade é um dos denominadores comuns de quase todas as partes desse percurso. A veracidade no seu sentido lato, construído e assimilado. Uma veracidade que interroga a minha própria existência no mundo, como se existir não fosse suficiente.
Quando fiz o meu coming out como pessoa bissexual fui questionada sobre a verdadeira natureza da minha (à altura) heterosexualidade, porque não me assumia eu como homossexual? Porém a dúvida surgia pelo facto de (à altura) eu ter relações heteronormativas e, como tal, certamente estaria a não ser verdadeira com as pessoas que amava. Mais tarde, vem a minha descoberta da palavra pansexual e a minha identificação com ela - o dilema começou novamente: isso não existe. Novamente a veracidade do meu amor é questionado em detrimento da argumentação de que no mundo só há certezas e formas protocolares de viver. O tempo passa e, afirmar a minha pansexualidade era uma tarefa árdua, não porque me obrigassem a fazê-lo, mas porque me obrigavam a ter a necessidade de o fazer. O meu amor por alguém era (e continua a ser) desmontado até nada dele restar.
Mais tarde o meu coming out como pessoa poliamorosa trouxe mais dúvidas à minha capacidade de estar e fazer corresponder, a dificuldade em encontrar pessoas que têm a mesma linha de pensamento do que eu deixou-me perdida durante algum tempo, duvidando da minha própria pessoa e de como era representado o meu amor. O questionamento sobre a minha forma de gostar era constante e, mais uma vez, uma constante demonstração de que se eu existo e assim o sinto é porque é válido. No seguimento deste processo, reaprendi-me enquanto anarquista relacional e a ideia de remover qualquer rótulo relacional assusta - novamente, quem sou eu e para onde vou.
No meio deste processo de questionamento amoroso, fiz os meus coming outs como mulher trans e depois como mulher trans não binária (ou pessoa não binária transfeminina). E, por outra vez, sou atacada pela dúvida de quem sou, a minha mutabilidade identitária é uma prova da minha própria incoerência - será? Novamente tenho de me auto afirmar permanentemente para ver a minha identidade reconhecida, o meu papel reconhecido e o meu valor enquanto pessoa estimado. O meu corpo passou a ser a fonte do controlo social à minha identidade, eu só sou se… eu só passarei a ser se. A minha existência identitária passou a estar nas mãos da construção social sobre uma realidade que nem sequer é minha. É verdade que procuro a desconstrução do género, da sua forma e do seu impacto social - questiono o que é feminino ou masculino - não me revejo nestes parametros (tenho-me aproximado bastante da definição agénero/neutrois/demigirl dentro do espectro não binário, para além de me identificar também como genderfuck).
Porém, no dia a dia, o não reconhecimento da minha não binariedade e o não reconhecimento de mim enquanto pessoa verdadeira torna-se perturbador - não ser interpretada como homem, mas também não ser intepretada como mulher, não porque sou não-binária, mas porque não sou uma mulher como as outras, verdadeira. Sou uma mulher de corporalidade masculina, logo não verdadeira.
E, como em todas as minhas outras identidades, vejo-me novamente na obrigação compulsória de provar a veracidade da minha existência e de quem sou - procurar os caminhos que me ajudem a percorrer de uma forma sensata e protegida no meu percurso.
Procurar mexer-me nestes trilhos de construções sociais milenares, que se alimentam delas próprias, é um percurso de libertação tremendo, mas sem dúvida um caminho de dúvida constante, um caminho de confronto permanente e um caminho duro. É, sem questão alguma, um processo de inclusão de mim mesma, com tudo o que posso ser, com tudo o que posso dar e receber. No fim, ainda uma estrada demasiado longa para ser percorrida por uma pessoa só, uma estrada demasiado longa para ser deixada a corroer nos imensos obstáculos. Porque não quero ser integrada, quero ser incluída. Porque não quero ter de pertencer a grupos, mas quero poder ser incluída. Porque não quero ser reconhecida apenas como parte, mas pelo meu todo. Porque não quero ser reconhecida pelo que construiram para mim, mas pelo que eu construo em mim.
Mais do que ser um conjunto de identidades que se interseccionam, sou. A minha existência deveria ser a prova de que as minhas identidades são reais e que são plenas e válidas - sou verdadeira.
Dani
Imagem: https://www.flickr.com/photos/bunnylounge/300023167/