Estou em casa. Há duas semanas que estou em casa. Sou uma pessoa privilegiada em relação ao meu trabalho, posso continuar a trabalhar normalmente, sem restrições em casa. Já podia fazer teletrabalho antes, se precisasse. A diferença é que estarei mais tempo, muito mais tempo do que num regime normal em que peço para trabalhar de casa. Porém tenho todas as comodidades que poderia ter. Trabalhar na área de engenharia de software dá-nos esta vantagem. Um privilégio. Infelizmente, não é este o caso de muitas pessoas, imensas pessoas.
Para que eu possa estar em casa, no meu processo de quarentena, muitas pessoas estão a manter a cidade nos seus mínimos. Continuo a poder ir à loja comprar o que me falta em casa, continuo a poder ir buscar comida para os meus gatos, continuo a poder arranjar, se necessário, o meu microondas, continuo a ter Internet, televisão, água, gás, luz. Todos serviços que estão a ser assegurados por alguém. Muitas vezes esse alguém em condições não dignas de trabalho, em condições desumanas, em condições de risco elevado. Graças a essas pessoas eu posso continuar a executar o meu trabalho diariamente, com risco mínimo. Este é momento em que muitas pessoas dizem que estas pessoas são as nossas heroínas, mas durante todo o ano não compreendem o quanto essencial são estes trabalhos e o quanto, apesar disso, estas pessoas vivem precariamente. Muitas vezes mulheres e pessoas racializadas, pessoas migradas, pessoas sem documentação que lhes permita aceder à maioria dos serviços essenciais em Portugal.
O vírus não discrimina quem atinge, mas nós discriminamos. As desigualdades sociais tornam-se maiores e pessoas em situações mais vulneráveis, tornam-se pessoas em situações ainda mais vulneráveis. O vírus não discrimina, mas o nosso sistema reinventa-se a si mesmo e não dá hipótese a quem já com dificuldades vive. O capital faz sempre para sobreviver, sacrificando quem acha que deve ser sacrificado. O vírus não discrimina, mas a minha classe social permite-me estar mais protegida que outras pessoas. É a desigualdade social a funcionar, é o capital a dizer quem é protegido e quem não é.
Os despedimentos em massa, os despejos que continuam a acontecer, as pessoas que estão em casa em situação de risco por violência, junta-se os agressores com as vítimas, as pessoas que voltam a entrar no armário por terem famílias homofóbicas ou transfóbicas, as pessoas que vivem isoladas e que por esta situação vão estar ainda mais isoladas, os abandonos, a falta de financiamento para continuar a pagar as despesas básicas (casa, água, …), as muitas pessoas sem casa e deixadas ao abandono. O aumento do racismo, da xenofobia, da violência contra pessoas migradas. A desproteção a que as pessoas trabalhadoras do sexo estão sujeitas. A falta de políticas de cariz social peca em todas as suas frentes. Dando-se privilégio a manter uma economia em mínimos do que a proteger na íntegra, a população. Isto é mais do que económica, uma crise social.
É nestas alturas que devemos procurar estratégias comunitárias, procurar soluções que façam frente a esta estratégia de poder. Procurar soluções contra o isolamento e toda a repressão que se faz sentir. Repensar o modo como vivemos em comunidade, como podemos estar presentes umas para as outras. É, neste momento, necessário criatividade para repensar o sistema. Pequenos gestos contam imenso, aquele telefonema para aquela pessoa que está só ou, as compras para uma pessoa vizinha. É repensar os nossos privilégios e entender como agora e no futuro podemos ter uma contribuição social mais assertiva, mais coerente com um sistema de luta pela igualdade social.
Porque todas as pessoas merecem uma vida digna Porque todas as pessoas merecem viver e não só sobreviver.
Dani
Imagem: PixBay - Quarentine