É com grande satisfação que posso dizer que o meu “processo” está a correr bem e, no hospital, o meu nome já foi oficialmente alterado para Daniela Filipa. Ainda que seja apenas mais “uma letra” no nome, é a marca de um começo, de mudança, de construção.
Olhando para estes últimos meses, os mesmos que me mostrei ao mundo, os momentos que me afirmei publicamente, vejo que a minha construção pessoal tem sido bastante positiva. É uma evolução que depende muito de mim e do modo como me vou sentido dia após dia. Entre todo este caminho pessoal há toda uma interacção social que decorre do meu dia a dia, da minha presença, da minha existência.
Felizmente, as minhas maiores dificuldades têm sido aquelas que me tocam interiormente e não propriamente as exteriores. Se há discriminação? Há. Se tenho conseguido contornar essas dificuldades? Tenho. O ambiente exterior nos locais de maior importância têm sido favoráveis. Contudo, nem tudo é agradável. Existe continuamente um desafio interior para filtrar algumas afirmações ou comportamentos de algumas pessoas. Acredito que a minha forma de ver o mundo e de interagir com ele seja positiva e que isso contribua em grande parte para o facto de não arranjar continuamente muitos problemas, mas vejamos situações menores e engraçadas:
- Ir no metro, como todos os dias vou, e ouvir e ver duas senhoras a discutir em bom português o que eu era e, inclusive, a fazer apostas.
- Estar no Pingo Doce, ouvir um pai balbuciar algumas frases “feias” para a filha e mulher. Colocou a miúda a olhar para mim intensamente.
- Estar no Centro Comercial, passar uma mãe com a filha e o marido e dizer a rir “Oh filha! Já viste se eu agora começasse a vestir o teu irmão com saias? AhAh”
- Estar no café sentada a escrever e ter um senhor ao meu lado que apenas dizia “Bichas, estas bichas aqui… bichas… bichas…”
- Ver muitas vezes as pessoas olharem para mim e comentarem em voz baixa para a pessoa que está ao lado. Sim, eu sei ler os lábios.
- … poderia acrescentar aqui uma série de episódios destes…
Estes, sem dúvida alguma, serão os mais agradáveis. Já ouvi algumas frases piores, bem piores. No entanto há uma coisa que tem funcionado. Não me sentir tensa, não me sentir nervosa, manter a postura e manter o sorriso. Em muitas destas situações, quando devolvo um sorriso - principalmente quando há crianças envolvidas - e deixo um “Olá :)” simpático, as pessoas ficam sem resposta e param de comentar e, algumas vezes, até acabam por esclarecer alguma dúvida comigo.
Para situações em que revejo pessoas que não sabem da minha situação, seja porque não as vejo há muito tempo, não lhes falei do assunto ou seja porque vou a um local como cliente e sempre apareci como “Daniel” e agora apresento-me de modo ligeiramente diferente, dou o espaço da surpresa. Acho que seria irrealista da minha parte acreditar que não haveria uma reacção primária do outro lado, mesmo sendo uma pessoa muito tolerante e/ou de mente aberta. Dando esse espaço é fácil integrar uma conversa simples, sem grandes voltas, que me permita falar do nome Daniela e da minha nova postura no mundo.
Acredito que muito do processo pelo qual eu passo é facilitado se eu incluir nele a ajuda que devo dar para permitir às pessoas que me rodeiam me entenderem. Acredito que, mesmo que por vezes seja cansativo, um dos passos passa sempre pela educação que posso dar. A informação não aparece do nada e é importante eu transmiti-la na medida das minhas possibilidades.
Pode ser que um dia, quando tudo isto for ensinado desde cedo, não haja necessidade de explicar, de formar.
Num mundo em que ser transgénero tem igual valor a ser cisgénero. Num mundo em que trans e cis só está relacionado com o processo e não com o ser.
Dani Bento